TY - JOUR AU - Revista Brasileira de Estudos de Defesa, Editorial PY - 2022/04/05 Y2 - 2024/03/28 TI - Editorial JF - Revista Brasileira de Estudos de Defesa JA - RBED VL - 8 IS - 2 SE - DO - 10.26792/rbed.v8n2.2021.75293 UR - https://rbed.abedef.org/rbed/article/view/75293 SP - AB - <p align="justify"> </p><p align="justify">Desde a sua criação em 2014 a Revista Brasileira de Estudos de Defesa (RBED) tem trabalhado para o desenvolvimento das áreas de defesa e segurança. No escopo dessa missão, os Dossiês Temáticos da RBED têm cumprido com os objetivos que balizam o nosso foco e escopo, em especial o de incentivar “o intercâmbio de ideias, o debate de problemas pertinentes a esses temas e o diálogo acadêmico multidisciplinar que aborde, a partir de diferentes áreas do conhecimento, os campos de interesse da publicação”.</p><p align="justify">Não obstante os proponentes de Dossiês se tornem os futuros organizadores do número, cabe ao Editor da RBED a realização de procedimentos como a designação de pareceristas e decisão editorial. Desta forma, mantêm-se os elevados padrões de qualidade galgados pela revista, os quais se balizam no sistema “duplo-cego”. Consagrando mais uma vez o sucesso do diálogo entre a RBED e a comunidade de defesa, temos a satisfação de apresentar o presente número.</p><p align="justify">O dossiê que compõe esta edição da Revista Brasileira de Estudos de Defesa (RBED) consolida os destacados debates construídos por dois anos dentro do Grupo de Trabalho da ANPOCS (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais) igualmente intitulado <em>Violência Política e Forças Armadas na América Latina.</em></p><p align="justify">Organizado por Marcos Alan Ferreira (UFPB) e Marcial A. G. Suarez (UFF), o GT congregou durante o biênio 2020-2021 um total de 23 trabalhos em um frutífero espaço de diálogo sobre a adoção de políticas de segurança, tanto estatais quanto internacionais, que possuem como instrumento central de intervenção social a ruptura de princípios como o de Estado de Direito e Direitos Humanos.</p><p align="justify">Os trabalhos do GT demonstraram a conexão entre violência política e forças armadas em um diapasão internacional. Isto se traduz hoje na América Latina pela adoção de política de segurança com a participação intensa das Forças Armadas. Busca-se neste número especial não apenas compreender a formulação e a militarização das políticas de segurança, mas também abrir o espaço para compreender a origem e as fissuras das transições dos regimes autoritários que assolaram a América Latina entre os anos 1960 e 1980 para as “novas democracias”, que agora entraram em crise em grande parte dos Estados da região.</p><p align="justify">O dossiê traz uma parcela importante dos trabalhos apresentados no GT, partindo da ideia de que para compreendermos o tema da adoção de estratégias como a <em>mano dura</em> na América Latina do século XXI, em especial no Brasil, devemos ter em perspectiva o laço estreito que esta estratégia possui com a crise de violência social, violência política, crise econômica e a militarização da segurança pública. Este é fenômeno cada vez mais marcante tanto na América Latina quanto no próprio Brasil, como demonstrado amplamente na literatura recente (ver Pimenta et.al. 2021; Rodrigues 2012; Souza e Serra 2020; Passos e Acácio 2021). Unido a este fenômeno está a questão da violência endêmica que permite o avanço de regimes informais de governança vivenciados em prisões e áreas periféricas das zonas urbanas latino-americanas, frequentemente conectados com mercados ilícitos de drogas e armas (ver Cipriani 2021; Ferreira e Richmond 2021; Feltran 2020).</p><p align="justify">Com um total de sete artigos, o dossiê é diverso ao apresentar tanto uma visão regional como casos específicos que necessitam ser compreendidos para pensar violência política e forças armadas nas Américas. Abrindo o dossiê, David Mares contribui com o artigo <em>Exploring the Variation in Levels of Drug-related Violence</em>. Autor considerado uma referência global no exame da violência, conflito e paz latino-americanos, Mares nos proporciona uma instigante reflexão sobre como a questão das drogas é um tema transversal que permeia a discussão sobre a atuação das forças armadas na América Latina. Ainda mais importante, Mares mostra que a violência conectada com as drogas demanda uma construção conceitual ampla de como os níveis de violência ligados ao narcotráfico afetam o Estado e a sociedade como um todo. De forma incisiva o autor vai de encontro à uma noção comum que associa necessariamente altos índices de violência com a existência de mercados ilícitos de drogas. Esta chave analítica é questionada pelo autor, e para tanto oferece uma leitura que provoca um olhar mais cuidadoso sobre os contextos políticos, sociais, econômicos e de se segurança, a qual busca inferir que a dinâmica da violência está intrinsecamente vinculada não só apenas a existência de um mercado ilícito, mas propriamente a dinâmica deste mercado e do seu <em>milieu.</em></p><p align="justify">Sob uma perspectiva mais regional, o artigo seguinte, <em>Espaços desgovernados? Presença militar como combate ao crime na América Latina</em>, de Victoria Monteiro da Silva Santos, traz problematizações importantes para pensarmos a presença militar na região. A autora demonstra como a ideia de espaços sem presença do Estado – ou desgovernados – amparam excessos estatais no combate à criminalidade organizada em três locais: Brasil, Colômbia e México. Ainda além, mostra que a ocupação militar supre uma demanda por “presença estatal” nos três países, fato que enfraquece programas e agências estatais civis e limita a agência de comunidades locais para atuarem na violência que lhes afetam diariamente. A presença militar em ações que são solidárias àquelas que deveriam ser de natureza civil, ainda são muito comuns em vários países latino-americanos o que os permite questionar a partir do estudo de Victoria Santos, quais são os limites das ações de segurança que podem ser desenvolvidos pelas forças de segurança pública civis e ao mesmo tempo, o porquê da perenidade da presença das forças armadas em ações que não convergem diretamente com sua razão fundamental.</p><p align="justify">Em seguida, ainda dentro deste debate mais amplo, há artigos que discutem temas centrais que unem o local e o internacional. Um exemplo claro é o artigo <em>Do Haiti ao Rio de Janeiro e Vice-Versa: A Pacificação como Construção da Paz à Brasileira, </em>de Natali Hoff e Ramon Blanco. Nele, os autores trazem debates centrais sobre como a ideia de pacificação promovida pelas forças de segurança brasileira estão intimamente conectadas com a experiência destas mesmas forças no projeto de pacificação do Haiti. Ainda além, demonstra-se ali que há uma via de mão dupla, na qual a experiência doméstica nas operações de garantia da lei e da ordem (GLO) no Rio de Janeiro alimentaram a experiência na década de 2000 e 2010 no Haiti, assim como a vivência da missão no Haiti retroalimentaram as incursões domésticas das Forças Armadas brasileiras.</p><p align="justify">Dialogando com o debate de Hoff e Blanco, o artigo <em>A Guerra para Dentro: Pacificação como doutrina e prática das Forças Armadas do Brasil</em>, de Thiago Rodrigues, Thaiane Mendonça e Tadeu Morato, demonstram como a ideia de pacificação é um lema nas forças armadas brasileiras, em especial no Exército, que se traduzem em silenciamento de minorias e de ideologias não alinhadas com os meios militares. Isto advém desde Duque de Caxias passando por Marechal Rondon, e a luta contra a “subversão” na Ditadura Militar.  O Haiti e as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) são uma culminação de um processo histórico em que pacificação se traduz em controle e racionalidade militar aplicados à segurança pública.  Nesse sentido se pode compreender um <em>continuum</em> da disposição das Forças Armadas, as quais não agem por decisão própria unicamente, mas sim provocadas pelo poder político na maioria das vezes, para desempenhar ações que deixam de lado ou enfraquecem sua função primeira constitucional para, então, adquirir um contorno “policial”, competência esta que fragiliza a instituição das Forças Armadas, tanto na sua forma como na sua doutrina. Para além das implicações políticas a que o texto alerta, entre os diversos méritos do texto, o artigo se destaca por trazer o debate sobre pacificação à luz do fenômeno da contrainsurgência. Ao salientar a dualidade de expressões como “Ordem e Progresso”, “Segurança e Desenvolvimento” e “Braço Forte, Mão Amiga”, os autores desnudam como a mentalidade de pacificação é uma chave explicativa fundamental para compreender a orientação doméstica das forças armadas no Brasil.</p><p align="justify">Não se pode perder de vista que a aplicação das forças de segurança em operações domésticas conecta-se também com a multiplicação de atores não-estatais violentos que operam na América Latina contemporânea. O mais preocupante deles são os grupos paramilitares e milícias, especialmente pelo fato destes últimos frequentemente apresentarem laços com o poder público. Isto é demonstrado no artigo de Fábio Nobre e Daniel Ferreira, intitulado <em>Atores não estatais violentos e instituições informais no Brasil (2008-2018). </em>A detida análise de Nobre e Rodrigues demonstram que a complexidade da temática necessita trazer outros conceitos centrais da Ciência Política e Relações Internacionais, tais como instituições políticas e violência. Ao examinar o caso particular das milícias operantes no Rio de Janeiro, eles nos permitem olhar como a crise de segurança não é fruto de uma sociedade violenta, mas também de uma fragilidade estatal marcante que assola os Estados latino-americanos, tal como já demonstrado por autoras como Jenny Pearce (2010).</p><p align="justify">Conectado ao debate de Nobre e Rodrigues, o artigo <em>O estado de exceção militarizado no Brasil. Zonas ambíguas entre forças armadas, polícias e milícias no contexto contemporâneo,</em> de Luís Antônio Francisco de Souza e Carlos Henrique Aguiar Serra, examina como a cinzenta cooperação entre polícias e milícias, assim como a aplicação ampla de Forças Armadas na segurança pública, acabam por gerar uma tutela ambígua: militarização das forças policiais e policialização das forças armadas. Os autores demonstram que esta tutela policial e militar está amparada em uma perspectiva histórica, que ganha força nos anos recentes com a intervenção federal no Rio de Janeiro e a ascensão da extrema-direita ao poder no Brasil. Autores clássicos como Walter Benjamim e Frederic Gros trazem o referencial teórico que permite entender este binômio apresentado pelos autores de militarização-policialização no Brasil. Na análise oferecida pelos autores o leitor será convidado a refletir sobre as justaposições entre as ações policiais e as ações militares, fato que se desdobra pela natureza adquirida das ações militares na esfera da segurança pública. Tal situação cria uma área nebulosa onde a ideia de exceção surge como um conceito fundamental para se compreender as dinâmicas que envolvem, especialmente no Rio de Janeiro, ações que ultrapassam as competências das formas militares e por outro lado, criam um hiato normativo para as ações policiais.</p><p align="justify">Por fim, o dossiê é concluído com o excelente e inovador artigo <em>Incursões das forças armadas na segurança pública sob as lentes do jornalismo para a paz: o Rio de Janeiro como “laboratório de guerra”, </em>de Erica Winand, Juliana Bigatão e Pedro Moura. O texto apresenta um debate ainda incipiente no Brasil, mas de profunda relevância, que é o jornalismo para a paz aplicado a casos latino-americanos. Fruto de uma pesquisa cuidadosa feita no âmbito do Observatório Sul-Americano de Defesa e Forças Armadas, Winand et. al. examinam as operações armadas na segurança pública no estado do Rio de Janeiro, entre os anos de 2016 a 2018 e como estas são retratadas por uma ótica de jornalismo para a guerra que pouco contribui para a superação da violência vivenciada nas áreas carentes do Rio de Janeiro. Na verdade, a cobertura da mídia sobre a violência política no Brasil silencia grupos majoritários da população brasileira, especialmente pobres, negros e jovens de periferia. Concentra-se a cobertura na espetacularização da racionalidade militar que acaba por legitimar a violência do Estado.</p><p>Ao trazer sete contribuições de qualidade para pensar violência política e forças armadas, a Revista Brasileira de Estudos de Defesa abre um espaço de diálogo importante e interdisciplinar que permitirá para pensar novas dinâmicas que são necessárias para reconstruir as relações sociedade-instituições, especialmente na busca de construção de confiança mútua e superação de uma violência endêmica. Este conjunto de artigos se propõe como um propulsor que possibilite novas arenas de debate sobre o papel das forças armadas nos problemas vivenciados cotidianamente pela sociedade latino-americana, arenas estas que permitam o diálogo intenso entre as várias disciplinas que possuem como tema central as questões de Defesa e Segurança e, no caso deste dossiê, temas que abrangem também segurança pública compreendida para além da atuação unicamente de atores estatais. Busca-se, assim, oferecer um conjunto de análises que componham este mosaico desafiador que se traduz pela relação entre Defesa e Segurança em seus distintos níveis e escalas.  </p> ER -